Ativismo negro durante a ditadura militar: uma história de repressão e apagamento

Os ativistas Luiz Alberto, ex deputado federal baiano, e Zélia Amador, professora de Belém do Pará, comentam a atuação negra e o legado da Ditadura Militar para o nosso povo

Por Jamile Novaes

Há exatos 58 anos, em 31 de Março de 1964, acontecia o golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil. Para muitos, o regime que durou até o início de 1985 é considerado como o período mais sombrio e cruel da história do país. Bom, não estão errados. A não ser que você seja uma pessoa negra. Nesse caso, fica difícil lembrar de algum período histórico em que a crueldade, a repressão,  a tortura e o assassinato não fizeram parte do cotidiano. Mas uma coisa é fato: a ditadura militar representa um grande atraso político para o país e suas sequelas podem ser percebidas até os dias de hoje.

Munidos com tanques de guerra e com o discurso de que uma ameaça comunista rondava o Brasil, na madrugada do dia 31 de Março de 1964, o Exército Brasileiro depôs o então presidente João Goulart, o Jango. Poucos dias depois, foi decretado o Ato Institucional nº 1 e o Congresso Nacional elegeu o general Humberto de Alencar Castelo Branco como o novo presidente. A partir daí, mais 17 atos institucionais foram decretados com o objetivo de fortalecer o poder militar e reprimir qualquer tentativa de subversão ao regime.

Tanques militares em frente à Esplanada dos Ministérios, em Brasília (1964) | Foto: Wikipedia

Durante os 21 anos que se seguiram, foram muitos os movimentos de libertação que agitaram o país e, como resposta, o regime militar criminalizou movimentos de oposição e vitimou milhares de pessoas com prisões, exílios, torturas e mortes. Até hoje, centenas de desaparecimentos por motivações políticas que aconteceram no período seguem sendo investigados.

Quando se pensa em atuação política negra de enfrentamento ao regime militar, provavelmente, o primeiro – e talvez único – nome lembrado é o de Carlos Marighella, guerrilheiro comunista baiano que ajudou a fundar a  Ação Libertadora Nacional e foi assassinado por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em 1969. Mas Marighella foi o único negro que se destacou no combate à ditadura militar? Onde estava o movimento negro brasileiro entre os anos de 1969 e 1985?

Desmobilização de articulações negras no início da ditadura militar

A ideia de democracia racial, suposta vivência harmônica entre brancos, negros e indígenas, sistematizada por Gilberto Freyre através do livro “Casa Grande e Senzala” em 1933, nas décadas que se seguiram, tornou-se o discurso dominante e foi incorporado enquanto bandeira política nacional. Nascia ali a ideia de um Brasil mestiço, em que o pertencimento racial dos indivíduos nada significava, diante da cultura compartilhada por todes e do ideal maior de nação. Pelo menos em teoria. 

Na prática, o racismo cotidiano em nada era abalado e o  regime militar, de forma conveniente, se apropriava do mito da democracia racial para desmobilizar e criminalizar qualquer articulação organizada em torno do debate das relações raciais, sobretudo através da Lei de Segurança Nacional, que entendia quaisquer denúncias ao racismo como subversão e incitação de ódio contra os demais grupos raciais.

Nesse contexto, a permanência do ativista Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN) – ativo entre os anos de 1944 e 1961 – se tornou insustentável no Brasil e ele acabou recorrendo ao auto-exílio para os Estados Unidos, de onde continuou a sua luta denunciando a realidade da população negra brasileira. Alberto Guerreiro Ramos, deputado e intelectual negro, integrante do TEN, foi exilado pelo regime e também radicou-se nos Estados Unidos. 

Teatro Experimental do Negro | Foto: Reprodução

Estava instalado um estado de censura, onde falar de negritude, racismo ou fazer qualquer crítica ao modelo das relações raciais existentes no Brasil eram motivos de medo por parte da militância.

A omissão da esquerda

Apesar de também criminalizados, os movimentos e partidos de esquerda permaneciam organizados na clandestinidade, construindo debates e ações estratégicas  para denunciar e combater o regime militar. No entanto, ativistas negros que participavam dessas articulações, não conseguiam emplacar a questão racial enquanto bandeiras de luta dentro dos movimentos. 

Zélia Amador de Deus, professora do Instituto de Ciências da Arte e Assessora de Diversidade e Inclusão da Universidade Federal do Pará (UFPA), iniciou a sua trajetória ativista no movimento secundarista e posteriormente integrou o partido Ação Popular (AP), criado a partir da articulação da Juventude Universitária Católica (JUC). Ela conta que buscava as suas referências sobre o debate racial a partir do movimento que estava sendo construído nos Estados Unidos na época e que, em seu partido, o debate nunca era colocado. “A minha esperança era que um dia fossemos discutir a questão racial, mas não se discutia. Isso era uma coisa minha, que eu vivia sozinha”, afirma.

UFPA concedeu o título de Professora Emérita à Zélia Amador, em 2019 | Foto: Alexandre de Moraes.

O baiano Luiz Alberto Silva dos Santos, que participou das articulações para a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT) na Bahia, afirma que “o discurso da esquerda era o seguinte: questão racial e questão de gênero dividem a luta de classe”. No entanto, Luiz Alberto também conta que a negritude não passava batida no momento de reprimir os militantes negros e negras de esquerda que, quando apreendidos pelo regime militar, eram torturados com mais intensidade que os militantes brancos.

Luiz Alberto, deputado federal pelo PT entre os anos de 1997 e 2015, discursa no plenário | Foto: Agência Câmara via Jornal Grande Bahia.

Se para o movimento negro de forma geral era difícil partir para o enfrentamento, as mulheres negras tinham ainda mais dificuldade para conseguir impor as suas vozes e se mobilizar em torno de suas pautas epescíficas. Porém, como lembra Zélia Amador, a falta de registros históricos oficiais de organizações de mulheres negras no período da ditadura, não signfica que o feminismo negro não estava presente já naquela época até mesmo, muito antes. “Não podemos esquecer das irmandades, que temos até hoje, como a Irmandade da Boa Morte, no Recôncavo Baiano. Essas mulheres já estavam organizadas, não como hoje, mas organizadas de outras maneiras e formas”, explica.

Arte, cultura e produção científica como formas de ativismo

Com a recusa da esquerda em promover o debate racial e a forte repressão do regime contra militantes negros e negras, restava buscar estratégias  no campo da cultura, da arte e da produção científica para avançar no debate. Grandes referências dos estudos sobre questões raciais no Brasil, como Lélia Gonzalez e Maria Beatriz Nascimento, desde a década de 1960 já se faziam presentes nos ambientes acadêmicos, pensando e produzindo saberes que vieram a guiar e impulsionar a discussão racial no Brasil.

“A academia deve muito aos movimentos sociais de um modo geral, e ao movimento negro, ela deve muito mais! Porque a academia não tratava de racismo, o entendimento ainda era da suposta democracia racial. A academia sequer pensava que o racismo era causador de injustiça. Aliás, a academia praticamente não pronunciava a palavra racismo”, argumenta Zélia Amador.

Beatriz Nascimento, Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez | Foto: Reprodução

No campo da cultura, a criação do Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil, em Salvador (BA), é um dos marcos mais importantes do período. Inicialmente, o bloco seria nomeado como “Poder Negro”, o que não aconteceu por determinação da polícia federal, que justificou a censura afirmando que o nome carregava conotação negativa. 

Em 1975, o Ilê Aiyê desfilou na avenida pela primeira vez e o impacto da presença negra auto afirmada roubando a cena no carnaval de Salvador foi tamanho que rendeu uma nota no Jornal A Tarde com o título “Bloco Racista, nota destoante”. A nota se referia ao desfile como “um feio espetáculo” e afirmava que “não temos felizmente problema racial. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro”.

Jornal A Tarde, 13 de fev. de 1975, p.3

Luiz Alberto Silva vivenciou o momento da criação e do primeiro desfile do Ilê Aiyê e avalia que o bloco “teve um papel importante, porque ele resgata elementos fundamentais de uma visão de África. Até então você não falava de África. E quando se falava na escola, era uma coisa absurda. O ocidente sempre tratou África como se fosse um país, reduzindo o continente. O Ilê foi resgatar essa ideia de África, falar dos países africanos”.

Para Zélia Amador, foi a capacidade de adaptação e a diversidade na atuação dos movimentos negros que garantiram que o debate racial não “morresse” nos anos mais duros da ditadura: “as entidades culturais fizeram seu trabalho com muito afinco, a gente deve ao Ilê Aiyê ir pra rua com um bloco só de negros, a gente deve essa afirmação”, enfatiza.

Rearticulação

Alguns anos mais tarde, em 18 de junho de 1978, nascia em São Paulo o Movimento Negro Unificado (MNU), com o objetivo de combater a exploração racial e o desrespeito, organizar o ativismo negro em ampla escala, além de garantir e ampliar a participação da população negra em todos setores da sociedade brasileira. Menos de um mês depois, no dia 7 de julho do mesmo ano, o MNU realizava a sua primeira ação organizada, um ato público que reuniu cerca de 2 mil pessoas em resposta ao racismo sofrido por quatro meninos negros no Clube Regatas Tietê e à prisão e tortura do trabalhador negro Robson Silveira da Luz.

Capa do jornal Folha de S. Paulo em 8 de julho de 1978

Luiz Alberto contribuiu com a criação e foi  coordenador nacional do MNU entre 1996 e 1998. Ele conta que as pautas levantadas pelo movimento no período da ditadura militar não eram tão diferentes do que se pauta atualmente. “A gente pautava a questão da sexualização da mulher negra, da figura das mulatas, a violência policial, a questão das trabalhadoras domésticas, que em maioria eram mulheres negras, a questão quilombola. A gente caracterizava tudo isso como um apartheid”, explica ele.

Em 1978, o MNU realizou uma assembleia nacional, onde o dia 20 de novembro foi declarado como o Dia Nacional da Consciência Negra. A partir dali, a data que faz referência ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, no ano de 1695, passou a ser um marcador de luta pelos direitos da população negra no Brasil. A Polícia Federal tentou impedir a realização do evento e, segundo Luiz Alberto, a assembleia acabou acontecendo com a presença de inúmeros agentes infiltrados.

Como era de se esperar, o MNU passou a sofrer com a constante repressão e existem relatos sobre infiltração de agentes da polícia federal em reuniões e outros espaços de articulação política. A atenção estava voltada para três pólos onde a atuação do movimento era mais intensa: Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Militantes eram monitorados em diversos espaços. Segundo Luiz Alberto, a vigilância acontecia, principalmente, porque os militares e a elite brasileira “sabiam que isso [o movimento negro] era mais perigoso para desestruturar o que eles montaram do que a luta tradicional da esquerda brasileira”.

Fora desse pólo, no início da década de 1980, em Belém do Pará, surgia também o Centro de Estudos e do Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), trazendo uma preocupação com a educação racial, através da desmistificação da ideia de democracia racial no Brasil. “Os comentários na época era que não tinha racismo, que o nosso surgimento estava criando o racismo, então a gente surge dentro de uma sociedade crente nessa suposta democracia racial e começa a trabalhar nas escolas. A gente procurava professores mais progressistas”, explica Zélia Amador, que foi uma das fundadoras do grupo. O CEDENPA ampliou a sua atuação, se debruçando posteriormente no processo de proposição e construção de políticas públicas para negras e negros. O grupo se mantém ativo até os dias atuais.

Nos dias 26 e 27 de Agosto de 1986, já durante o processo de redemocratização do Brasil, o MNU participou da Convenção Nacional “O Negro e a Constituinte”, em Brasília (DF). O encontro contou com a participação de representantes de entidades negras de vários estados brasileiros e foi realizada para sistematizar as principais demandas da população negra brasileira para enviar ao Congresso Nacional. Dentre as demandas apontadas, estava o pedido de criminalização do racismo que, de fato, veio a entrar na Constituição Federal de 1988.

Sequelas

Embora ativistas negras e negros tenham sofrido um processo de apagamento histórico e não sejam comumente associades à luta contra a ditadura militar, é inegável que muitas das construções que forjaram a militância negra atual são frutos da luta empenhada durante esse período. Mas, além das contribuições históricas, também restaram muitas sequelas da ditadura que são estruturantes para a manutenção da repressão e violência contra a população negra. 

O ativismo negro conseguiu fazer incontáveis avanços: como a inserção nas universidades; a criminalização do racismo e a visibilização das pautas raciais como um todo, mas o regime militar significou um enorme atraso no avanço do debate racial e no desenvolvimento de políticas públicas de reparação histórica e social. 

Além disso, um dos legados mais perversos da ditadura militar é o modelo de segurança pública ainda vigente, que tem como principal expoente a polícia militar brasileira, instituição que mantém uma guerra declarada contra a juventude negra e tomba corpos negros no chão diariamente.

“Eles [os policiais] são treinados como soldados e soldado é diferente de polícia. Soldado é treinado para enfrentar inimigos. E nessa concepção nossa juventude é a inimiga do Estado. É inimiga da sociedade. Pra mim esse foi o legado mais perverso da ditadura militar sobre o nosso povo”, comenta Luiz Alberto.

Para a população negra, a ditadura militar ainda está aí, nas ruas das periferias, no camburão, na vigilância dos corpos, das ideias, no aumento dos índices de letalidade policial. Ainda é possível sentir na pele a tortura, o medo e a dor da morte ou da perda. 

O ativismo que existiu durante o regime militar é constante. É lutar ou morrer em silêncio. E o silêncio, por mais que tenham tentado, para nós nunca foi uma opção.

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